A violência é a força dos mais frágeis

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“O fato de o homem ter um lado sombrio é terrível, convenhamos, pois, esse lado não é feito apenas de pequenas fraquezas e defeitos estéticos, mas tem uma dinâmica francamente demoníaca”, segundo C. G. Jung. “Mas se deixarmos que esses seres inofensivos formem uma massa, em determinadas circunstâncias essa massa pode dar origem a um monstro delirante. Cada indivíduo não passará, então, de uma célula minúscula no corpo do monstro; querendo ou não, já não terá outro jeito senão participar do desvario sanguinário da besta, apoiando-a na medida de suas forças” (Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 22).

O sentimento de superioridade moral pode inviabilizar a conexão com a psique total, cindindo a alma, impedindo o acesso a outras possibilidades de relacionamento e consideração pelo outro, pelo diferente, pelo que percebemos como oposto para que não se transforme em opositor, inspirando o mal que nos incita à tragédia. Isso ficou muito claro, no fatídico e vergonhoso caso de Mariana Ferrer, e no caso ocorrido nesta semana dentro do Carrefour de Porto Alegre, tornado público recentemente. Mariana Ferrer é mais uma pessoa que foi maltratada, recebeu injustamente palavras e gestos cruéis, foi submersa na matéria escura de quem não conhece a luz de uma consciência melhor, de uma bondade mais plena, de uma ação que traz a libertação. O homem morto no Carrefour era negro, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos de idade.

Seria pura violência? “Antes era escravidão, agora é racismo” (frase do filho de Regina Casé) o que impunha sofrimento aos nossos compatriotas.

A realidade psíquica constrói a realidade externa e, nessa perspectiva, a necessidade é olharmos para a realidade psíquica social. São centenas de anos vivendo em uma realidade massacrante onde o olhar impositor destrói a relação com a psique feminina. É notório que as falas de ataques a uma mulher, seja pelo seu comportamento, por sua vestimenta ou por sua forma de viver, são falas consolidadas em repertórios psíquicos antiquíssimos.

A história mostrou inúmeros casos de violência contra mulheres, o negro, o homoafetivo, o índio. Violência física, verbal e psicológica. Foram tantas mulheres mortas, desrespeitadas, mulheres acusadas por terem sido as provocadoras, como no conhecido caso de Ângela Diniz, ou pela morte da possibilidade existencial de uma mulher, como no livro “As três Marias” de Raquel de Queiroz. Foram tantas Ângelas e Marias reveladas nesse presente caso da Mariana Ferrer. Tantos negros e índios e homossexuais mortos ainda hoje.

Temos motivos de sobra para procurarmos uma nova orientação em relação ao convívio humano, uma superação da discriminação, da cegueira e da ignorância. Estamos imersos numa crise existencial que ameaça a saúde física e psíquica do planeta. E precisamos refletir e, principalmente, mudar nossa maneira de agir em relação aos outros seres que habitam a terra, sejam eles plantas, animais ou humanos.

Nós analistas junguianos, estamos tentando compreender o fenômeno violento vivenciado por muitos de nós com incredulidade diante de uma tal manifestação de um juiz, apoiado por uma maioria que exerce um poder sem causa real. Na tentativa de compreender esse fenômeno, podemos tomar a perspectiva da Psicologia Analítica de Carl G. Jung, em seu Estudos Psiquiátricos. Para ele, o sentimento de superioridade moral pode estar ligado a algum evento carregado de forte carga emocional, frequentemente recordado, ainda que não conscientemente, e que bloqueia a vontade de agir diferente. Esse mundo não é ideal e muitas são as ocasiões que conduzem a um desenvolvimento doentio, frustrado e mesquinho. Jung nos fala do diálogo com o inconsciente, da experiência de conversar com nossas emoções através das imagens simbólicas, de um caminho de individuação à frente de nós, sem data ou local de chegada, mas com uma confiança no ser psíquico central, no arquétipo que representa a possibilidade de uma maior sabedoria, de uma dinâmica mais saudável, de um crescimento integral.

Todavia, as experiências sombrias permanecem atuando no mais fundo de nosso interior, tomando-nos reféns, podendo, se não forem trazidas à consciência, nos levar a fechar ainda mais as nossas percepções perante os outros e suas realidades. Em outras palavras, se não olharmos de frente para aquilo que nos faz fracos e cruéis, facilmente confundimos atos violentos como sendo a nossa melhor qualidade.

Pode ser que a violência empregada, cuja finalidade é a supressão de “defeitos” nos outros, seja vista como uma forma de se defender das nossas próprias experiências mal sucedidas, que não queremos enfrentar. Contudo, se assim for, só o autoconhecimento, a autocrítica e o autocontrole podem livrar-nos da destruição da sociedade.

A manifestação é assustadora, pois escancara a sombra atuante. Se a fala vem cheia de paixão, se a luta vem cheia de emoção, estamos em campos sombrios. O que necessita ser olhado é a psique objetiva. De onde vem, para onde vai, e o que mantem falas de sustentação de um lugar “santificado” na conduta de uma mulher? É sobre essa manifestação que o olhar deve estar pautado. É revelador encarar o desejo manifesto pelo advogado de defesa no caso Mariana Ferrer, de manter a mulher em um determinado padrão de submissão a uma ordem de conduta adequada. O comportamento de Mariana e de muitas está sob julgamento. E até quando negros serão mortos porque confundidos com bandidos? Até quando poderemos suportar tanto preconceito sem reagirmos?

 Nesse sentido, precisamos lembrar de não nos deixarmos levar pela pressa de seguir o caminho já conhecido, que se revelou insensato, paranoico e destrutivo, mas termos a coragem de buscar por atitudes e palavras, sem inércia, que possam alterar a situação, como se estivéssemos nos perguntando: para onde essa ação, aparentemente de superioridade moral está nos levando?

O problema se agrava se tendemos a buscar retóricas políticas que preencham as frustrações, as faltas de reconhecimento de mérito e as insatisfações pessoais, sentidas como injustas e insuperáveis, provocadas pelos que chamamos de inimigo, aqueles que julgamos responsáveis e culpados por nossa condição interior, de nos deixar ser levados pelos preconceitos que construímos.

Precisamos enfrentar esta posição equivocada com retidão e lucidez para além do mal e da crueldade, para que não se instale a paranoia e histeria coletivamente.

O Instituto de Psicologia Analítica de Campinas – IPAC/AJB entende que a transformação de uma cultura só é possível a partir de si. Olhar para si mesmo e transformar a si mesmo é o caminho de fertilização para a transformação do outro. Somos sujeitos em constante transformação. A cultura somos nós.


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