Análise

A Análise a serviço da alma

Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann – Psicóloga, analista Junguiana pelo C. G. Jung Institut, membro da IAAP e AGAP, membro fundador do IPAC, Livre Docente no Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.

Resumo:

A alma, compreendida como psique – interioridade viva e expressiva do ser humano – possibilita um encontro profundo entre terapeuta e paciente. Quando Jung se refere à psicoterapia como tratamento da alma, devemos nos lembrar que não está se referindo a uma prática religiosa e sim à tarefa do terapeuta de prestar uma especial atenção ao desenvolvimento do paciente, no sentido de que ele possa se tornar o que originalmente nele está disposto, e não tentando influenciar seu processo estabelecendo metas de comportamento preestabelecidas. Para que isso se torne possível, é importante que o terapeuta não interfira no sistema auto regulador da psique, no movimento em que o paciente começa a fazer experiências consigo e se instala um estado de fluidez e de transformação. A postura do terapeuta, nesta linha de reflexão, visa o papel do acompanhante no caminho, do condutor, que se coloca respeitosamente a serviço da psique e, apenas em caso de necessidade, está pronto a intervir para curar.

Palavras chave: psicoterapia, alma, desenvolvimento, transformação, psique.

Abstract:

The soul, comprehended as psyche – living and expressive inwardness of the human being – allows a deep encounter between therapist and patient. When Jung refers himself to the psychotherapy as treatment of the soul, we should remember that he is not referring to a religious practice but to the task the therapist should fulfill giving a special attention to the development of the patient, in the sense he may become what  is originally disposed in himself, and not trying to influence his process fixing pré-established aims of behavior. In order to make this possible, it is important that the therapist does not interfere in the auto-regulative system of the psyche, in the movement when the patient starts to make experiences with himself and there is the installation of a state of flux and transformation. The posture of the therapist, in this way of reflex ion, aims the role of a companion on the way, a conductor, who puts himself respectfully at disposal to the psyche and only in cases of necessity is ready to intervene in order to cure.

Key words: psychotherapy, soul, development, transformation, psyche.

Resumen:

El alma, comprendida como psique – interioridad viva e expresiva del ser humano – permite un encuentro profundo entre terapeuta e paciente. Cuando Jung se refiere a la psicoterapia como tratamiento de la alma, debemos nos recordar que el no esta se refiriendo a una practica religiosa, mas que o terapeuta debería preencher una misión prestando una especial atención al desarrollo del paciente, no sentido de que el se torne o que esta dispuesto originalmente  en el, y no tentar influenciar su proceso fijando metas pre-establecidas de comportamiento. Para que esto suceda es importante que el terapeuta no interfiera no sistema de auto regulación de la psique, en el movimiento cuando el paciente impieza a hacer experiencias consigo mismo e se instala un estado de flujo y transformación. La postura del terapeuta, en esta forma de pensar, objetiva o papel de compañero en el camino, un conductor que se coloca  respeitosa a disposición del servicio de la psique e solamente interfiera en casos de necesidad para curar.

Palabras llave: psicoterapia, alma, desarrollo, transformación, psique.

A Psicoterapia a serviço da alma

A alma, compreendida como psique – interioridade viva e expressiva do ser humano – possibilita um encontro profundo entre terapeuta e paciente. Ambos se aventuram na busca da resolução de conflitos, que temporariamente estancam a dinâmica saudável do indivíduo, e no empenho da transformação e da progressão renovada da energia psíquica.

Como Mario Jacoby diz: “A prática da psicoterapia junguiana consiste no encontro entre duas pessoas com a finalidade de tentar entender o que está ocorrendo no inconsciente de uma delas” (Jacoby, Mario, 1992, p. 13).

Por sua vez, Edinger coloca que na psicoterapia junguiana é necessária para a abertura (à psique objetiva ou arquetípica) tanto do paciente como do terapeuta. Refere-se à percepção de Jung que vê no tratamento psicológico o encontro de duas personalidades que se auto-influenciam, como duas substâncias químicas que se misturam e produzem uma transformação em ambas (Edinger, E. 1995, p.245).

Para Whitmont

…a terapia é, na essência, o esforço para estabelecer um relacionamento adequado entre o ego e o estado inconsciente, para trazer à consciência as posições relativas que eles têm um com respeito ao outro e para descobrir as exigências de uma parceria cooperativa contínua. O progresso terapêutico depende da conscientização; de fato, a tentativa de uma pessoa tornar-se mais consciente é a terapia. O processo de auto regulação psíquica, resultante do diálogo entre as dimensões consciente e inconsciente, conduz à ampliação do ponto de vista consciente podendo resultar na cura da alma anteriormente impedida de alcançar a realização de sua inteireza. Se, por outro lado, os anseios e as necessidades do inconsciente forem desconsiderados, ele não poderá compensar ou completar de modo positivo o conhecimento e a experiência do indivíduo. Irá, então, sabotar e perturbar a estrutura e a dinâmica da psique consciente…  (Withmont, E., 1995, p. 259).

Quando Jung se refere à psicoterapia como tratamento da alma, devemos nos lembrar que não está se referindo a uma prática religiosa e sim à tarefa do terapeuta prestar uma especial atenção ao desenvolvimento do paciente, no sentido de que ele possa se tornar o que originalmente nele está disposto, e não tentando influenciar seu processo estabelecendo metas de comportamento preestabelecidas. Para que isso se torne possível, é importante que o terapeuta não interfira no sistema auto regulador da psique, no movimento em que o paciente começa a fazer experiências consigo e se instala um estado de fluidez e de transformação. Jung diz:

“O modo pelo qual se obtém a harmonização de dados conscientes e inconscientes não pode ser indicado sob a forma de uma receita. Trata-se de um processo de vida irracional que se expressa em determinados símbolos… Nesse caso o conhecimento de símbolos é indispensável, pois é neles que se dá a união de conteúdos conscientes e inconscientes. Da união emergem novas situações ou estados de consciência… A meta de uma psicoterapia que não se contenta apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade em direção à totalidade.” (Jung, 2000, par. 524). Sabemos que não conhecemos uma grande parte de nós mesmos, seja no âmbito pessoal ou impessoal. O melhor quer temos a fazer é mantermos uma relação cordial e, ao mesmo tempo, séria com essa dimensão oculta de nossa psique. Observamos que podemos pesquisar o desconhecido representando-o de diversas maneiras, seja como uma figura mitológica que pode expressar-se no exterior, seja como algo sem contorno ou medidas definidas; ou ainda podemos encontrá-lo em nós mesmos como uma vivência inteiramente interior. Pela experiência de Jung sabemos que este mundo interno é tão real como o exterior e atua sobre nosso eu consciente de modo semelhante aos fatos da vida que estamos acostumados a viver. Na verdade ele é até mais real porque ele é infinito e eterno e não se decompõe como acontece muitas vezes com o mundo exterior. No entanto, temos medo de conhecer esse mundo de imagens simbólicas e ser inundados por seus conteúdos. O perigo existe, mas não é maior que o perigo que certos acontecimentos do mundo exterior apresentam. Por isso o confronto entre essas duas dimensões é um trabalho árduo e não sempre uma tarefa aprazível.

Naturalmente, o tratamento da psicoterapia junguiana sempre levará em conta os dados concretos da história pessoal do indivíduo, tais como seu desenvolvimento físico, a influência da personalidade dos pais, da relação com os irmãos, a família e com o mundo em que vive. Esses dados influenciam a formação do eu consciente e determinam a sua continuidade.

Voltando então ao início de nossas reflexões, o que queremos dizer com a afirmação “psicoterapia como serviço a alma?”

Se contemplarmos mais de perto a palavra grega “therapeia”, perceberemos que seu primeiro significado é servir, num sentido específico: devoção diante dos deuses. E um segundo sentido diz: cuidado, tratamento de alguém ou acompanhamento, assistência e cura de um doente.

De modo semelhante a palavra psique tem vários significados: o primeiro é sopro, força vital, vida; seu segundo, alma daquele que faleceu. Apenas seu terceiro significado chega mais perto do que conhecemos como âmbito da psique que devemos cuidar: temos como primeira associação o bom senso, como faculdade de pensar, o espírito, o coração e os estados interiores, como a coragem; numa segunda associação temos um aspecto irracional: a cobiça, o desejo, o gozo, a paixão, a tendência. Assim, a psicoterapia significa, em seu sentido original o serviço ao sopro, à vida, à respiração, ao espírito, ao coração e aos estados interiores, com respeito e veneração diante dessas dimensões humanas.

A postura do terapeuta, nesta linha de reflexão, enfatiza o papel do acompanhante no caminho, do condutor, que se coloca respeitosamente a serviço da psique e apenas em casos de necessidade realiza uma interferência curativa. Este acompanhamento visa à harmonização do sentido interno com o externo da vida, a re-ligação com a base criativa original, restabelecendo o equilíbrio entre dentro e fora.

Trata-se, portanto, de estabelecer o vínculo do eu consciente com a dimensão psíquica inconsciente, seja ela da esfera pessoal ou coletiva. E não apenas estabelecer o vínculo, mas integrar conscientemente as experiências resultantes desse encontro e transpô-las para a vida, no sentido da conseqüência ética que Jung cita como um dos passos da Imaginação Ativa. A união da dimensão interior e exterior permite a espontaneidade total e o domínio completo da forma.  Assim, na pintura Zen surge o momento em que cada traço é exato. O impulso criativo, vivenciado como energia vinda do centro, parece realizar essa integração.

Nas palavras de Jung: 

Eu estava mergulhado, sem qualquer ajuda, num mundo totalmente estranho, onde tudo me parecia difícil e incompreensível. Vivia numa tensão extrema e, muitas vezes, tinha a impressão de que blocos gigantescos desabavam sobre mim. Os trovões sucediam-se ininterruptamente. “Resistir” a tudo foi uma questão de força brutal. Outros nisso sucumbiram. Mas havia em mim uma força vital, elementar, quase demoníaca, e desde o início tencionara encontrar o sentido daquilo que vivera nessas fantasias. O sentimento de obedecer a uma vontade superior era inquebrantável e a sua presença constante em mim me sustinha – tal um fio condutor – no cumprimento da tarefa (Jung, p. 157).

Se não fosse pela etapa da conseqüência ética, a de transpor os insights obtidos nos contatos com o inconsciente, quem melhor representaria esse vínculo seria o artista e o praticante de rituais religiosos, além, é claro, do poeta que nos transmite os relatos mitológicos e do povo que cria os contos de fada. Nesses contextos se atualiza, em qualquer tempo e lugar, a ancestral predisposição herdada de produzir imagens simbólicas e, muitas vezes arcaicas, soterradas há muito tempo e, no entanto, sempre vivas e necessárias no caminho da individuação.

O artista vive esse processo sem necessariamente ter consciência da integração de seus conteúdos interiores. Ele “sofre” a tensão que antecede a criação de uma obra como algo inevitável, sem poder, como muitos de nós, se furtar a esse impulso que nasce do inconsciente. Para Jung o processo criativo do artista é algo vivo que se instala na psique humana e que, em muitos casos vive um estado de autonomia, fora da hierarquia da consciência.

A biografia de grandes artistas deixa isso bastante claro: a urgência criativa freqüentemente é tão imperativa que atropela a humanidade e usa todo seu potencial a serviço da obra, algumas vezes à custa do equilíbrio e de sua saúde. A obra não nascida na psique do artista é uma força da natureza que quer alcançar seu objetivo, seja por meios tirânicos, seja por artifícios sutis. O impulso criativo no artista é como se fosse uma árvore na terra que dela tira seu alimento para crescer (Jung, C.G., 1987, parágrafo 115).

Por outro lado, se lembrarmos do processo de Individuação, como realização da personalidade original do indivíduo, em direção ao centro de nosso ser psíquico – o Self -, o movimento de criar parece indicar que o artista também necessita desse trabalho para poder existir, uma vez que ele é, por natureza, fadado a servir de veículo dessa realidade transpessoal e até mesmo universal.

Em nós, que não temos a vocação dos artistas, nem da profissão religiosa e também não somos poetas, a intensidade da expressão do imaginário interior é menor, mesmo porque nossa linguagem tomou outros rumos no correr de nosso desenvolvimento. Em épocas antigas, há milhares de anos, a linguagem corrente entre nossos ancestrais era feita de imagens. As pinturas rupestres, os rituais religiosos, os mitos de todos os tempos revelam a fantasia criadora dos homens e a importância que essa função simbólica tinha para eles. O homem de nossos dias, para alcançar a cura, o restabelecimento da harmonia interior, parece ter a necessidade de voltar a essa linguagem que permite a manifestação em cor, forma e movimento das emoções, dos sentimentos, da comoção em relação à vida.

Citando Verena Kast (1997, pp. 23-24 e 37): “Simbolizar significa descobrir o sentido oculto na situação concreta… Projetamos nosso inconsciente sobre a realidade de superfície. No entanto, não podemos projetar um tema qualquer, mas apenas temas – no tocante ao símbolo – que tenham conexão interna com nossa existência… Nos símbolos, nossas dificuldades especiais e atuais tornam-se manifestas, assim como nossas próprias possibilidades de vida e desenvolvimento”.

Jolande Jacobi, que trabalhou longos anos como analista utilizando-se de recursos expressivos, afirma que nossa época poderia representar o fim de um ciclo em que a consciência individual lentamente se desprendeu do cosmos externo, tantas vezes representado nos relatos mitológicos na forma de deuses e heróis, e, também da convivência coletiva e inconsciente, formando uma personalidade cada vez mais individual. Agora seria o momento de superar os limites desta existência pessoal e voltar às raízes do inconsciente coletivo, no cosmos interior que aparece nas imagens pintadas e desenhadas, podendo, então, voltar à experiência da unidade integrada na consciência. Sabemos que durante um processo analítico, em que passamos pelas fases de confronto com os mundos exteriores e interiores, o sentido de vida de cada um de nós se revela nessa integração consciente.

Barbara Hannah (1981), que trabalhou com Jung usando o método da Imaginação Ativa, nos avisa de que não se trata de evocar o antigo pensamento mágico de utilizar o conhecimento do inconsciente para influenciar nossa vida pessoal e a de outras pessoas em nosso próprio benefício. O modo legítimo de usar este método é pesquisar honestamente o desconhecido para alcançarmos nossa inteireza e a verdade de nosso ser.

Do ponto de vista prático, o mais importante é manter a relação com a imagem que se apresenta e não deixá-la afundar novamente no inconsciente, desenvolvendo então atividades de desenho, pintura, modelagem ou anotando o que vimos ou ouvimos. Manter total atenção ao que estamos dizendo ou fazendo durante o exercício da imaginação. Precisamos aprender que o inconsciente se manifesta de diversas maneiras, entre elas o irracional e o incompreensível, o inteiramente diferente de nossa postura consciente. Assim podemos superar um certo bloqueio da consciência que impede o movimento livre do emergir das imagens.

Sempre, no entanto, o objetivo é entrar em contato com o inconsciente, levando a sério a tarefa de nos conhecer e tomar consciência do caminho que nos conduz ao nosso mito pessoal, ao sentido de nossa vida.

Jung pesquisou a sabedoria oriental, e em particular a chinesa. Descobriu que neste contexto a aceitação dos dois lados da personalidade seria o estado de Tao, para o qual não temos uma tradução direta no ocidente. O ideograma chinês é composto das noções ‘cabeça’ e ‘caminho’, o que poderia indicar ‘o caminhar consciente’. Para Richard Wilhelm a tradução mais próxima seria ‘o sentido’. Tao, ou caminho de individuação, ou viver o sentido da vida, parece que são apenas modos diversos de designar o mesmo fenômeno.

Quero finalizar esta reflexão com uma pequena história da qual Jung dizia a Barbara Hannah que seria importante contá-la antes de qualquer palestra ou seminário. Jung contou-a em uma de suas últimas reuniões de natal no Clube Psicológico em Zurique. Apesar de todos os presentes já conhecerem a história, o estado interior do grupo modificou-se. Foi aí que Barbara Hannah (1981) percebeu porque ele lhe tinha dito para repeti-la sempre.

Havia uma grande seca em uma parte da China, na qual Richard Wilhelm vivia. Depois que todos haviam tentado as formas habituais de trazer a chuva, foi chamado um fazedor de chuva. Era um velhinho corcunda que viajava em um carro coberto e que respirou com desagrado o ar ao descer. Pediu para ficar em uma pequena cabana fora da vila. Sua comida deveria ser colocada do lado de fora desta simples habitação. Ficou três dias sem dar notícias. Depois disso não só choveu, como também nevou fortemente, o que não era usual nesta época do ano. Muito impressionado Wilhelm foi visitá-lo e perguntou como poderia ter feito chover e nevar. O velho disse: “Eu não fiz a neve, não sou responsável por isto”. Wilhelm insistiu que tinha havido uma seca terrível e que após aqueles três dias uma grande quantidade de chuva e neve havia caído. O velho disse; “Oh, isso eu posso explicar. Veja, eu venho de um lugar onde as pessoas estão em ordem; elas estão no Tao, por isso o clima lá está em ordem também. Quando cheguei aqui, percebi que as pessoas estavam em desordem e que me contaminavam. Então fiquei sozinho até alcançar novamente o Tao, e aí naturalmente choveu”.

Bibliografia

Edinger, E. – Anatomia da Psíque, Cultrix, São Paulo, 1995,

Hannah, Barbara – Encounters with the Soul. Active Imagination as developed by C.G.Jung, Sigo Press, Boston 1981  

Jacoby, Mario – O Encontro Analítico, Cultrix, São Paulo, 1992

Jung, C. G. – A energia psíquica, obras completas, vol., Petrópolis

Petrópolis, RJ, 2002

– O Segredo da Flor de Ouro, Vozes, Petrópolis, RJ, 2001

– O Espírito na Arte e na ciência, obras completas, vol. XV, Petrópolis, RJ, 1987

– Memórias, Sonhos e reflexões, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1975

– Arquétipos do Inconsciente Coletivo, Vol. IX, obras completas, Vozes, Rio de Janeiro, 2000

Kast, Verena – A Dinâmica dos Símbolos, Loyola, São Paulo, 1997

Withmont, E. – A Busca do Símbolo, conceitos básicos de psicologia analítica, Cultrix, São Paulo, 1995