A Ética na Psicoterapia e na Análise
Joel Sales Giglio
A nossa atuação como Terapeutas e/ou Analistas faz-nos deparar com uma série de situações que nos exigem certas atitudes ou ações que levem em conta uma série de princípios e de regras que convencionamos chamar de regras éticas e que estão parcialmente objetivadas nos diversos códigos de conduta referentes ao atendimento do paciente e à pesquisa clínica. Na verdade devemos lembrar antes de mais nada a diferença conceitual entre Ética e Moral.
A palavra Ética vem do grego ethos, e tem a ver com costume, caráter, conduta, enquanto que moral vem do latim mores, e está mais relacionada com o sistema de valores de uma dada sociedade, em uma dada época. Dessa forma seria mais adequado nos referirmos a regras morais, quando falamos de normas de conduta profissional.
Grande parte destas regras está escrita nos chamados códigos de ética de diversas corporações profissionais. Na prática médica temos, por exemplo, o Código de Ética Médica, elaborado pelo conselho federal de medicina, referendado pelos diversos conselhos regionais de medicina, de acordo com cada estado da Federação. Os psicólogos também têm o seu Conselho de Ética, assim como as demais profissões ligadas á saúde: Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, etc.
A diversidade e sutileza das situações clínicas, somadas à complexidade dos relacionamentos interpessoais, à variabilidade individual (seja do paciente ou do terapeuta) e às diferentes circunstâncias e fatores que influenciam o processo terapêutico, no entanto, fazem com que nem sempre as regras de conduta ética sejam suficientes para orientar o terapeuta ou o analista quanto à melhor conduta com determinado paciente, ou em determinadas circunstâncias. Por isto, nos cursos de formação e especialização, há a necessidade de se criar espaço para uma reflexão mais aprofundada dos dilemas éticos a que as profissões de ajuda estão submetidas.
Com finalidade didática, vou nomear alguns tópicos que solicitam da parte do terapeuta uma atitude ou mesmo uma ação ética. Mas antes disto, vamos examinar brevemente o que significa, de fato, assumir uma atitude ética.
O trabalho terapêutico exige da parte do profissional uma postura ética a priori. Isto significa buscar sempre fazer o máximo para o bem estar do paciente, respeitar seus valores e escolhas pessoais, não julgá-lo segundo seus próprios (do terapeuta) códigos morais e religiosos e evitar fazer qualquer coisa que possa eventualmente prejudicá-lo.
Isto significa que o terapeuta tem que conhecer muito bem seus próprios pré –conceitos, seu código pessoal de valores morais, religiosos, etc „Ÿ os quais nem sempre são claramente conscientes þu, suas preferências, sua tipologia psicológica, seu gosto estético, seus pré-conceitos, etc.
Estas são apenas algumas das razões pelas quais julgo que todo terapeuta deve passar, durante sua formação, por um processo de análise ou por uma psicoterapia, que sem dúvida vai lhe facilitar este auto-conhecimento, já que a experiência clínica tem demonstrado que é muito difícil que uma pessoa sozinha tome consciência de certos aspectos de sua sombra, em particular aqueles tidos como negativos pela pessoa e/ou pela comunidade.
Jung considera mesmo que o trabalho para se tornar consciente dos aspectos da sombra, o qual se desenvolve sobremaneira na análise pessoal, seja essencial para se ter uma atitude realmente ética frente ao paciente, conforme enfatizam PROULX (1994) e SOLOMON (2001). Hoje existe um consenso, nas associações de Psicanálise, de Psicologia Analítica e em outras instituições formadoras de psicoterapeutas, de que a análise ou a psicoterapia pessoal é essencial para o conhecimento da própria sombra, o qual, por sua vez, nos ajuda a evitar que projetemos no paciente aquilo que conscientemente não admitimos como sendo nossas próprias tendências negativas.
O conhecimento mais aprofundado da sombra também nos permite evitar que confundamos nossos próprios desejos e escolhas com aqueles de nosso cliente.
Conforme assinala John Beebe, a integridade do terapeuta é uma qualidade fundamental para se ter uma atitude ética. Este autor ainda afirma que o psicanalista þu e eu diria: qualquer terapeuta þu tem duas obrigações básicas, que são: proteger a auto estima do paciente e proteger o setting como um lugar onde a cura possa acontecer. (BEEBE, 1992). Vale a pena ampliar um pouco esta discussão.
A primeira obrigação do terapeuta seria a de zelar pela auto- estima do paciente. Em termos operacionais, isto se vincula ao cuidado empático e de apoio que devemos ter com o paciente, apoiando nele a sua crença de que ele pode ser curado. Não há nenhuma falsa sugestão de inverdade nisto, porque por mais grave que seja o quadro clínico, sabemos que existe um arquétipo do Curador em cada um de nós, conforme assinalou Groesbeck (GROESBECK, 1983), e que pode ser ativado com a ajuda do terapeuta.
Como deve ser o setting que propicie condições de cura? Falamos aqui não só do ambiente físico, mas principalmente do psicológico. No primeiro caso, devemos levar em conta que o contacto terapêutico necessita de um ambiente agradável, acolhedor e acusticamente isolado, já que, como sabemos, o segredo não é só uma questão ligada á intimidade da relação, mas também um fator de cura, quando compartilhado com uma outra pessoa em quem se deposita grande confiança, conforme assinalou Jung (1982). No segundo caso, o ambiente psíquico deve ser acolhedor, bem estruturado quanto a tempo e espaço, e deve estimular e encorajar o paciente a depositar suas angústias, sentimentos, emoções e idéias sem medo de ser censurado ou avaliado. Nem sempre nós temos consciência da amplitude e significado das expressões não verbais que transmitimos ao paciente. Recentemente recebi uma paciente que havia ido a um outro colega, o qual manifestou pela expressão facial certa perplexidade frente à exposição da intensidade dos sintomas da paciente. Esta, percebendo a reação emocional do médico, sentiu como julgamento e não mais retornou e nem mesmo tomou a medicação receitada. Por isto é que devemos ser supervisionados e analisados, para que possamos melhorar a auto-percepção de nossas reações emocionais frente às queixas do cliente, e canalizá-las para formas de reação que não sejam iatrogênicas. Repito: não se trata de reprimi-las, mas de ter consciência delas e de dar-lhes roupagens que não sejam passíveis de serem interpretadas
negativamente pelo paciente.
O assunto sigilo profissional envolve tanta complexidade que não pode ser objeto apenas das regras contidas nos Códigos de Ética. Vejamos, por exemplo, a questão de apresentação de casos clínicos em reuniões clínicas, congressos, supervisões, etc. Todos nós concordamos que a troca de experiência clínica tem sido um instrumento importante para o desenvolvimento de técnicas de trabalho mais adequadas e aperfeiçoadas, seja na Psicoterapia, na Psicanálise, no Serviço Social e nas terapias de maneira geral. Mas este intercâmbio de experiências deve estar submetido a certos parâmetros, pois estamos lidando com a delicada questão da intimidade pessoal.
Existem duas soluções possíveis, aceitas pela maioria dos autores e profissionais. A primeira delas é ter o pleno consentimento por parte do paciente, para que partes de sua história clínica, de seus sonhos ou de seus trabalhos expressivos – pinturas, desenhos, caixas de areia, etc – sejam expostos ao público. Porém, mesmo com este consentimento, o terapeuta deve tomar certos cuidados, como, por exemplo, selecionar só partes da história clínica que realmente sejam necessárias, não mencionar o nome real do paciente, etc. tudo no sentido de preservar-lhe a intimidade.
A segunda solução seria mascarar os dados de maneira a impossibilitar de fato que o paciente possa ser identificado. Mas esta saída do problema esbarra na possibilidade de descaracterização do caso. Eu, certa vez, usei deste expediente ao dar um exemplo clínico em classe, mas percebi, depois, que as mudanças que fiz foram tantas que o exemplo clínico perdeu sua força.
Pessoalmente, prefiro a primeira solução, com o risco óbvio do paciente não aceitar que parte de sua vida torne-se pública, mesmo de tal forma que sua identificação pessoal seja impossibilitada. Também é bom lembrar que este tornar público destina-se a um grupo de pessoas ou a profissionais que se beneficiarão com o trabalho de pesquisa clínica do colega que divulga o caso.
A publicação em revistas, jornais ou quaisquer meios comuns de divulgação é condenável, porque não tem nenhuma finalidade científica, de maneira geral.
Vale lembrar aqui que as publicações científicas visam o progresso da ciência através do intercâmbio de idéias, descobertas, novos métodos de trabalho, etc.. com a comunidade de pesquisadores.
Mais raro é o caso do paciente que solicita ao terapeuta que publique seu caso. Quando isto ocorre, trata-se freqüentemente de paciente com fortes tendências narcisistas e, evidentemente, o terapeuta não deve ceder a esta solicitação de caráter patológico. Uma vez fui procurado por um ex-paciente que queria que eu informasse sobre seu caso clínico a um autor, com a finalidade deste escrever uma peça de teatro baseada em sua vida. Eu, gentilmente, não concordei, mas percebi o desapontamento do ex-cliente e, mais ainda, do escritor.
Algumas vezes o terapeuta pode quebrar o sigilo profissional involuntariamente ao conversar informalmente com outros colegas, ou mesmo com amigos ou familiares, sobre algum caso difícil ou que tenha envolvido dificuldades no relacionamento terapêutico. Infelizmente o terapeuta só se dá conta da gravidade da situação, que pode levar até a processos nos Conselhos de Ética da categoria, quando o fato já ocorreu. Não é fácil descobrir as causas desse comportamento, mas eu poderia nomear algumas possibilidades:
(a) A angústia mobilizada pela problemática do paciente no terapeuta é muito intensa, a ponto dele não conseguir manter o sigilo em sua solidão. A prática clínica, desde os primórdios da Psicanálise, vem demonstrando que o fato de compartilharmos um segredo que nos atormenta com uma pessoa em quem confiamos tem um efeito catártico e tranqüilizante. Talvez seja este o motivo inconsciente da conversa sobre um caso clínico num contexto social, onde ela é inaceitável do ponto de vista ético. Daí a necessidade de discutirmos com nossos pares nossos casos clínicos mais difíceis, ou que mais nos angustiam, ou ainda aqueles que mobilizam intensamente nossos sentimentos e emoções.
(b) O paciente tocou algum conflito ou complexo mal elaborado do terapeuta e isto mobilizou neste uma intensa angústia contra-transferencial.
(c) O terapeuta teve uma formação superficial, ou excessivamente teórica, que não o preparou adequadamente para lidar com os fenômenos transferenciais e contra- transferenciais.
(d) O terapeuta não foi preparado na sua formação para lidar com questões éticas ligadas ao segredo profissional.
(e) Existe uma relação ambígua, mista de profissional e social com o paciente.
(f) A vida social do terapeuta é tão pobre e solitária e por isto seu mundo relacional quase se restringe a seus pacientes. Dessa forma, ele revela a outros, com inconsciente naturalidade, a intimidade de seu paciente como se ele fosse simplesmente uma pessoa do seu círculo de relações sociais, e só toma consciência disto a posterior, as vezes em situações muito tensas, que envolvem uma terceira pessoa. Uma maneira de se evitar tais desvios do papel de terapeuta é cuidar para se ter uma vida com relacionamentos sociais amplos e profundos, para que nossa libido possa também se dirigir a outros objetos e pessoas fora do setting terapêutico. Atividades criativas, exercidas nas diversas modalidades
de arte costumam ser um meio não só de enriquecimento pessoal e de desenvolvimento da intuição e sensibilidade, mas também de ampliação de nossos relacionamentos sociais. Gostaria, por último, de levantar a questão da produção artística por pacientes e sua eventual exposição ao público e mesmo sua comercialização.
É preciso lembrar, antes de mais nada, que o uso da arte em terapia tem a finalidade precípua de ajuda no processo de recuperação da saúde do paciente. Portanto, qualquer outro uso deverá ser seriamente discutido com o paciente ou com seus familiares, pois em muitos casos o juízo crítico do paciente pode estar comprometido, como, por exemplo, nas psicoses. É preciso que se avalie se essa exposição pública não poderá prejudicar o paciente na sua imagem social, já que os preconceitos contra a doença mental ainda são vigentes no nosso país. Por outro lado, a noção de cidadania tem se ampliado nos últimos anos e hoje existe uma legislação federal específica sobre os direitos do doente mental þu e estamos aqui falando particularmente do paciente psicótico. Mesmo em casos de alienação mental, ele hoje não pode, por exemplo, ser internado em um hospital psiquiátrico sem a autorização de seus familiares. Em casos em que isto não seja possível, a Promotoria local deve ser notificada, quando se justifique uma internação emergencial þu casos de auto ou hetero agressão, por exemplo.
Tudo isto nos faz pensar que a decisão de se expor publicamente uma obra de arte de um paciente passa por um delicado equilíbrio entre a vontade e os direitos do paciente e sua gratificação pessoal por um lado, e os riscos para a sua imagem que isto possa representar para a re- inserção social dele próprio.
Observa-se que tanto no curso médico como em outros que preparam profissionais para atuar na área da saúde mental não tem sido atribuído ainda o
valor devido ao preparo para uma atuação ética, embora se tenha já um avanço neste campo com o estabelecimento das comissões de ética das faculdades e
institutos de assistência à saúde e pesquisa. Muitos profissionais tornam-se vítimas de seu próprio despreparo, comprometendo, inclusive, a imagem da
profissão perante a sociedade. Hoje, na sociedade contemporânea, há uma certa visão difusa entre o público e o privado, o que torna candente toda discussão da questão ética. Isto aponta para uma necessidade ainda maior de reflexões sobre a cultura, a cidadania e a própria saúde das relações sociais.
REFERÊNCIAS
BEEBE, J. Integrity in Depth. College Station: Texas A & M
University Press 1992.
GROESBECK, C. Jess A imagem arquetípica do medico ferido.
Junguiana – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. 1:72-96.
São Paulo: SBPA. 1983
JUNG, C. G The Practice of Psychotherapy. NY: Princeton.
Bollingen Series XX, The Collected Works of C.G. Jung. V.16: #123 – 125.
1982.
PROULX, C. On Jung´s theory of ethics. Journal of Analytical
Psychology, 39, 1, 101 -119. 1994.
SOLOMON, H. M. Origins of the ethical attitude. Journal of Analytical
Psychology. 46, 3, 443-454. 2001.
A palavra Ética vem do grego ethos, e tem a ver com costume, caráter, conduta, enquanto que moral vem do latim mores, e está mais relacionada com o sistema de valores de uma dada sociedade, em uma dada época. Dessa forma seria mais adequado nos referirmos a regras morais, quando falamos de normas de conduta profissional.
Grande parte destas regras está escrita nos chamados códigos de ética de diversas corporações profissionais. Na prática médica temos, por exemplo, o Código de Ética Médica, elaborado pelo conselho federal de medicina, referendado pelos diversos conselhos regionais de medicina, de acordo com cada estado da Federação. Os psicólogos também têm o seu Conselho de Ética, assim como as demais profissões ligadas á saúde: Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, etc.
A diversidade e sutileza das situações clínicas, somadas à complexidade dos relacionamentos interpessoais, à variabilidade individual (seja do paciente ou do terapeuta) e às diferentes circunstâncias e fatores que influenciam o processo terapêutico, no entanto, fazem com que nem sempre as regras de conduta ética sejam suficientes para orientar o terapeuta ou o analista quanto à melhor conduta com determinado paciente, ou em determinadas circunstâncias. Por isto, nos cursos de formação e especialização, há a necessidade de se criar espaço para uma reflexão mais aprofundada dos dilemas éticos a que as profissões de ajuda estão submetidas.
Com finalidade didática, vou nomear alguns tópicos que solicitam da parte do terapeuta uma atitude ou mesmo uma ação ética. Mas antes disto, vamos examinar brevemente o que significa, de fato, assumir uma atitude ética.
O trabalho terapêutico exige da parte do profissional uma postura ética a priori. Isto significa buscar sempre fazer o máximo para o bem estar do paciente, respeitar seus valores e escolhas pessoais, não julgá-lo segundo seus próprios (do terapeuta) códigos morais e religiosos e evitar fazer qualquer coisa que possa eventualmente prejudicá-lo.
Isto significa que o terapeuta tem que conhecer muito bem seus próprios pré –conceitos, seu código pessoal de valores morais, religiosos, etc „Ÿ os quais nem sempre são claramente conscientes þu, suas preferências, sua tipologia psicológica, seu gosto estético, seus pré-conceitos, etc.
Estas são apenas algumas das razões pelas quais julgo que todo terapeuta deve passar, durante sua formação, por um processo de análise ou por uma psicoterapia, que sem dúvida vai lhe facilitar este auto-conhecimento, já que a experiência clínica tem demonstrado que é muito difícil que uma pessoa sozinha tome consciência de certos aspectos de sua sombra, em particular aqueles tidos como negativos pela pessoa e/ou pela comunidade.
Jung considera mesmo que o trabalho para se tornar consciente dos aspectos da sombra, o qual se desenvolve sobremaneira na análise pessoal, seja essencial para se ter uma atitude realmente ética frente ao paciente, conforme enfatizam PROULX (1994) e SOLOMON (2001). Hoje existe um consenso, nas associações de Psicanálise, de Psicologia Analítica e em outras instituições formadoras de psicoterapeutas, de que a análise ou a psicoterapia pessoal é essencial para o conhecimento da própria sombra, o qual, por sua vez, nos ajuda a evitar que projetemos no paciente aquilo que conscientemente não admitimos como sendo nossas próprias tendências negativas.
O conhecimento mais aprofundado da sombra também nos permite evitar que confundamos nossos próprios desejos e escolhas com aqueles de nosso cliente.
Conforme assinala John Beebe, a integridade do terapeuta é uma qualidade fundamental para se ter uma atitude ética. Este autor ainda afirma que o psicanalista þu e eu diria: qualquer terapeuta þu tem duas obrigações básicas, que são: proteger a auto estima do paciente e proteger o setting como um lugar onde a cura possa acontecer. (BEEBE, 1992). Vale a pena ampliar um pouco esta discussão.
A primeira obrigação do terapeuta seria a de zelar pela auto- estima do paciente. Em termos operacionais, isto se vincula ao cuidado empático e de apoio que devemos ter com o paciente, apoiando nele a sua crença de que ele pode ser curado. Não há nenhuma falsa sugestão de inverdade nisto, porque por mais grave que seja o quadro clínico, sabemos que existe um arquétipo do Curador em cada um de nós, conforme assinalou Groesbeck (GROESBECK, 1983), e que pode ser ativado com a ajuda do terapeuta.
Como deve ser o setting que propicie condições de cura? Falamos aqui não só do ambiente físico, mas principalmente do psicológico. No primeiro caso, devemos levar em conta que o contacto terapêutico necessita de um ambiente agradável, acolhedor e acusticamente isolado, já que, como sabemos, o segredo não é só uma questão ligada á intimidade da relação, mas também um fator de cura, quando compartilhado com uma outra pessoa em quem se deposita grande confiança, conforme assinalou Jung (1982). No segundo caso, o ambiente psíquico deve ser acolhedor, bem estruturado quanto a tempo e espaço, e deve estimular e encorajar o paciente a depositar suas angústias, sentimentos, emoções e idéias sem medo de ser censurado ou avaliado. Nem sempre nós temos consciência da amplitude e significado das expressões não verbais que transmitimos ao paciente. Recentemente recebi uma paciente que havia ido a um outro colega, o qual manifestou pela expressão facial certa perplexidade frente à exposição da intensidade dos sintomas da paciente. Esta, percebendo a reação emocional do médico, sentiu como julgamento e não mais retornou e nem mesmo tomou a medicação receitada. Por isto é que devemos ser supervisionados e analisados, para que possamos melhorar a auto-percepção de nossas reações emocionais frente às queixas do cliente, e canalizá-las para formas de reação que não sejam iatrogênicas. Repito: não se trata de reprimi-las, mas de ter consciência delas e de dar-lhes roupagens que não sejam passíveis de serem interpretadas
negativamente pelo paciente.
O assunto sigilo profissional envolve tanta complexidade que não pode ser objeto apenas das regras contidas nos Códigos de Ética. Vejamos, por exemplo, a questão de apresentação de casos clínicos em reuniões clínicas, congressos, supervisões, etc. Todos nós concordamos que a troca de experiência clínica tem sido um instrumento importante para o desenvolvimento de técnicas de trabalho mais adequadas e aperfeiçoadas, seja na Psicoterapia, na Psicanálise, no Serviço Social e nas terapias de maneira geral. Mas este intercâmbio de experiências deve estar submetido a certos parâmetros, pois estamos lidando com a delicada questão da intimidade pessoal.
Existem duas soluções possíveis, aceitas pela maioria dos autores e profissionais. A primeira delas é ter o pleno consentimento por parte do paciente, para que partes de sua história clínica, de seus sonhos ou de seus trabalhos expressivos – pinturas, desenhos, caixas de areia, etc – sejam expostos ao público. Porém, mesmo com este consentimento, o terapeuta deve tomar certos cuidados, como, por exemplo, selecionar só partes da história clínica que realmente sejam necessárias, não mencionar o nome real do paciente, etc. tudo no sentido de preservar-lhe a intimidade.
A segunda solução seria mascarar os dados de maneira a impossibilitar de fato que o paciente possa ser identificado. Mas esta saída do problema esbarra na possibilidade de descaracterização do caso. Eu, certa vez, usei deste expediente ao dar um exemplo clínico em classe, mas percebi, depois, que as mudanças que fiz foram tantas que o exemplo clínico perdeu sua força.
Pessoalmente, prefiro a primeira solução, com o risco óbvio do paciente não aceitar que parte de sua vida torne-se pública, mesmo de tal forma que sua identificação pessoal seja impossibilitada. Também é bom lembrar que este tornar público destina-se a um grupo de pessoas ou a profissionais que se beneficiarão com o trabalho de pesquisa clínica do colega que divulga o caso.
A publicação em revistas, jornais ou quaisquer meios comuns de divulgação é condenável, porque não tem nenhuma finalidade científica, de maneira geral.
Vale lembrar aqui que as publicações científicas visam o progresso da ciência através do intercâmbio de idéias, descobertas, novos métodos de trabalho, etc.. com a comunidade de pesquisadores.
Mais raro é o caso do paciente que solicita ao terapeuta que publique seu caso. Quando isto ocorre, trata-se freqüentemente de paciente com fortes tendências narcisistas e, evidentemente, o terapeuta não deve ceder a esta solicitação de caráter patológico. Uma vez fui procurado por um ex-paciente que queria que eu informasse sobre seu caso clínico a um autor, com a finalidade deste escrever uma peça de teatro baseada em sua vida. Eu, gentilmente, não concordei, mas percebi o desapontamento do ex-cliente e, mais ainda, do escritor.
Algumas vezes o terapeuta pode quebrar o sigilo profissional involuntariamente ao conversar informalmente com outros colegas, ou mesmo com amigos ou familiares, sobre algum caso difícil ou que tenha envolvido dificuldades no relacionamento terapêutico. Infelizmente o terapeuta só se dá conta da gravidade da situação, que pode levar até a processos nos Conselhos de Ética da categoria, quando o fato já ocorreu. Não é fácil descobrir as causas desse comportamento, mas eu poderia nomear algumas possibilidades:
(a) A angústia mobilizada pela problemática do paciente no terapeuta é muito intensa, a ponto dele não conseguir manter o sigilo em sua solidão. A prática clínica, desde os primórdios da Psicanálise, vem demonstrando que o fato de compartilharmos um segredo que nos atormenta com uma pessoa em quem confiamos tem um efeito catártico e tranqüilizante. Talvez seja este o motivo inconsciente da conversa sobre um caso clínico num contexto social, onde ela é inaceitável do ponto de vista ético. Daí a necessidade de discutirmos com nossos pares nossos casos clínicos mais difíceis, ou que mais nos angustiam, ou ainda aqueles que mobilizam intensamente nossos sentimentos e emoções.
(b) O paciente tocou algum conflito ou complexo mal elaborado do terapeuta e isto mobilizou neste uma intensa angústia contra-transferencial.
(c) O terapeuta teve uma formação superficial, ou excessivamente teórica, que não o preparou adequadamente para lidar com os fenômenos transferenciais e contra- transferenciais.
(d) O terapeuta não foi preparado na sua formação para lidar com questões éticas ligadas ao segredo profissional.
(e) Existe uma relação ambígua, mista de profissional e social com o paciente.
(f) A vida social do terapeuta é tão pobre e solitária e por isto seu mundo relacional quase se restringe a seus pacientes. Dessa forma, ele revela a outros, com inconsciente naturalidade, a intimidade de seu paciente como se ele fosse simplesmente uma pessoa do seu círculo de relações sociais, e só toma consciência disto a posterior, as vezes em situações muito tensas, que envolvem uma terceira pessoa. Uma maneira de se evitar tais desvios do papel de terapeuta é cuidar para se ter uma vida com relacionamentos sociais amplos e profundos, para que nossa libido possa também se dirigir a outros objetos e pessoas fora do setting terapêutico. Atividades criativas, exercidas nas diversas modalidades
de arte costumam ser um meio não só de enriquecimento pessoal e de desenvolvimento da intuição e sensibilidade, mas também de ampliação de nossos relacionamentos sociais. Gostaria, por último, de levantar a questão da produção artística por pacientes e sua eventual exposição ao público e mesmo sua comercialização.
É preciso lembrar, antes de mais nada, que o uso da arte em terapia tem a finalidade precípua de ajuda no processo de recuperação da saúde do paciente. Portanto, qualquer outro uso deverá ser seriamente discutido com o paciente ou com seus familiares, pois em muitos casos o juízo crítico do paciente pode estar comprometido, como, por exemplo, nas psicoses. É preciso que se avalie se essa exposição pública não poderá prejudicar o paciente na sua imagem social, já que os preconceitos contra a doença mental ainda são vigentes no nosso país. Por outro lado, a noção de cidadania tem se ampliado nos últimos anos e hoje existe uma legislação federal específica sobre os direitos do doente mental þu e estamos aqui falando particularmente do paciente psicótico. Mesmo em casos de alienação mental, ele hoje não pode, por exemplo, ser internado em um hospital psiquiátrico sem a autorização de seus familiares. Em casos em que isto não seja possível, a Promotoria local deve ser notificada, quando se justifique uma internação emergencial þu casos de auto ou hetero agressão, por exemplo.
Tudo isto nos faz pensar que a decisão de se expor publicamente uma obra de arte de um paciente passa por um delicado equilíbrio entre a vontade e os direitos do paciente e sua gratificação pessoal por um lado, e os riscos para a sua imagem que isto possa representar para a re- inserção social dele próprio.
Observa-se que tanto no curso médico como em outros que preparam profissionais para atuar na área da saúde mental não tem sido atribuído ainda o
valor devido ao preparo para uma atuação ética, embora se tenha já um avanço neste campo com o estabelecimento das comissões de ética das faculdades e
institutos de assistência à saúde e pesquisa. Muitos profissionais tornam-se vítimas de seu próprio despreparo, comprometendo, inclusive, a imagem da
profissão perante a sociedade. Hoje, na sociedade contemporânea, há uma certa visão difusa entre o público e o privado, o que torna candente toda discussão da questão ética. Isto aponta para uma necessidade ainda maior de reflexões sobre a cultura, a cidadania e a própria saúde das relações sociais.
REFERÊNCIAS
BEEBE, J. Integrity in Depth. College Station: Texas A & M
University Press 1992.
GROESBECK, C. Jess A imagem arquetípica do medico ferido.
Junguiana – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. 1:72-96.
São Paulo: SBPA. 1983
JUNG, C. G The Practice of Psychotherapy. NY: Princeton.
Bollingen Series XX, The Collected Works of C.G. Jung. V.16: #123 – 125.
1982.
PROULX, C. On Jung´s theory of ethics. Journal of Analytical
Psychology, 39, 1, 101 -119. 1994.
SOLOMON, H. M. Origins of the ethical attitude. Journal of Analytical
Psychology. 46, 3, 443-454. 2001.