Ética e Religiosidade na Saúde Mental.

I CONGRESSO BRASILEIRO DE ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE NA SAÚDE MENTAL

XIII JORNADA DO PRONTOPSIQUIATRIA

20 a 22 / setembro / 2007 – Porto Alegre, RS

MESA 2-

 

ÉTICA E RELIGIOSIDADE NA SAÚDE MENTAL

JOEL SALES GIGLIO

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Associação Junguiana do Brasil – AJB

Instituto de Psicologia Analítica de Campinas – IPAC

Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde, Espiritualidade e Religiosidade – LASER

 

Resumo:

Para a Psicologia Analítica, a Saúde Mental tem uma relação íntima com o que Jung definiu como o Processo de Individuação. Individuar-se significa, entre outras coisas, deixar acontecer o diálogo Ego – Self em sua plenitude, ouvindo o mundo interior, o mundo prospectivo e idealista para o qual aponta o Si Mesmo. Este diálogo é feito através de uma linguagem simbólica, dentro de uma atitude não imediatista e objetiva, mas, ao contrário, eivada de religiosidade, aqui tomada na sua acepção oriunda do latim “religere”, isto é, voltar-se reverentemente para nossas verdades mais genuínas e profundas, ouvindo a voz de Deus ─ simbolicamente falando ─ dentro de nós. E é por aqui que a Individuação (busca da plenitude, da realização suprema, da saúde mental) se conecta com a Ética. Sem uma atitude ética, não podemos ser religiosos, e sem uma atitude religiosa, não podemos nos individuar.


ÉTICA E RELIGIOSIDADE NA SAÚDE MENTAL

 

JOEL SALES GIGLIO

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Associação Junguiana do Brasil – AJB

Instituto de Psicologia Analítica de Campinas – IPAC

Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde, Espiritualidade e Religiosidade – LASER

 

Ama e faze o que quiseres. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” Sto. Agostinho

 

A complexidade do assunto proposto para esta mesa, aliada à minha formação eminentemente clínica, na vertente teórica da Psicologia Analítica, quase que me obriga a restringir a discussão do tema, enfocando-o mais do ponto de vista do referencial teórico da Psicologia Junguiana.

Para a Psicologia Analítica, a Religiosidade é um fenômeno natural, com raízes arquetípicas, quase se aproximando da idéia de um “instinto” religioso no ser humano.

No âmbito da interpretação do fenômeno religioso, FREUD e JUNG representam duas vertentes diferentes, opostas em alguns aspectos. Pensamos mesmo que eles deram origem a duas formulações sobre o papel da Religião, que poderíamos chamar, respectivamente, de reducionista e de multideterminada.

Assim, por exemplo, para Freud, a idéia de um Deus criador nada mais é do que a projeção do pai da infância com toda a sua onipotência fantásmica. Paralelamente, o totemismo corresponderia a uma busca do pai substituto na Natureza. Tendo como referência, como moldura, uma perspectiva extremamente racional, Deus passa a ser interpretado pela Psicanálise como um produto da imaturidade psicológica, uma criação humana necessária, de função compensatória.

Já para Jung, a Religião, que constitui uma problemática central em sua obra, é uma manifestação do Inconsciente Profundo, que transcende o Inconsciente Pessoal e invade o amplo e fértil terreno do Inconsciente Coletivo. A verdadeira religião não é, para este Autor, o resultado da sublimação de alguma pulsão, mas é a manifestação de uma verdade que vem do Inconsciente Profundo, Coletivo. Esta concepção não exclui, em JUNG, o conceito de Religião também como uma manifestação do Divino – e neste ponto ele difere radicalmente de FREUD. Entretanto, o psiquiatra suíço deixa claro que centra suas reflexões sobre a questão da Religião na religiosidade enquanto fenômeno psíquico.

Lembremos que este autor define-se como um empirista, ou seja, parceiro da experiência. Assim é que, a partir de suas experiências pessoais e clínicas, ele concebe suas teorias, cotejadas com o conhecimento humanístico que ele vai buscar nas lendas, nos mitos, na Alquimia e nas religiões. Ao contrário de FREUD, ele não parte de uma interpretação pré concebida a respeito desses materiais da mente humana. Qualquer idéia, por mais absurda que pareça ser, é psicologicamente verdadeira para JUNG, na medida em que ela exista em um ser humano.

Religião para JUNG vem de religere (observar) e não de religare (10); isto nos ajuda a entender a significação de Religião no contexto da Psicologia Junguiana. Conforme observa MARONI (1994) (14), a derivação provinda de religare, atribuída pelos Padres da Igreja, como se vê, por exemplo, na interpretação encontrada em Santo Agostinho, faz com que a palavra “religião” implique em um contrato com Deus, em uma aliança. Essa aliança é conotada como mais legal no Judaísmo e mais amorosa no Cristianismo, mas ainda é sempre algo que pode ser rompido, como qualquer contrato. Já a concepção incorporada por JUNG, com raízes na religio da antiguidade pagã, faz com que a palavra “religião” seja entendida como “um tipo de atitude que exige cuidados e um conscencioso observar de certos sentimentos, idéias e eventos numinosos, e sua reflexão sobre eles” (JUNG, 1983, # 6,73) (10).

JUNG aborda a problemática da Religião sem priorizar o aspecto confessional, isto é, identifica o núcleo da questão como sendo a experiência numinosa, com todas as decorrências de suas significações para o indivíduo. Aprofunda-se naquilo que reconhece como a base do fenômeno religioso em qualquer cultura e em qualquer tempo: as representações primordiais coletivas, que remetem aos conteúdos arquetípicos da alma humana. Ele percebe que o sentido de Deus sofre metamorfoses no interior do ser humano e adquire mesmo uma significação ambivalente, como vemos no seu texto “Resposta a Jó” (in Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, JUNG, 1983). Importante também é lembrarmos que JUNG acredita nos resultados positivos de uma colaboração entre a Psicologia e a Teologia para tornar mais eficazes os cuidados necessários à psique humana.

Enquanto FREUD inclinava-se a pensar que o homem moderno, em sua evolução, tendia a dispensar a Religião, JUNG percebe esse mesmo homem como cada vez mais impregnado de um sentimento de falta de apoio nas concepções tradicionais do fenômeno religioso, e assim, tendente a buscar uma outra compreensão de Deus e a criar um novo sentido para a Religião. JUNG percebe, então, o homem moderno como desamparado, e sugere que a Religião pode dar-lhe o suporte necessário para confrontar seu inconsciente. Desta forma, para este Autor, a Religiosidade guarda estreitas relações com o processo de Individuação.

Individuar-se significa, entre outras coisas, deixar acontecer o diálogo Ego – Self em sua plenitude, ouvindo o mundo interior, o mundo prospectivo e idealista para o qual aponta o Si Mesmo. Este diálogo é feito através de uma linguagem simbólica, dentro de uma atitude não imediatista e objetiva, mas, ao contrário, eivada de religiosidade, aqui tomada na sua acepção oriunda do latim “religere”, isto é, voltar-se reverentemente para nossas verdades mais genuínas e profundas, ouvindo a voz de Deus ─ simbolicamente falando ─ dentro de nós. E é por aqui que a Individuação (busca da plenitude, da realização suprema, da saúde mental) se conecta com a Ética. Sem uma atitude ética, não podemos ser religiosos, e sem uma atitude religiosa, não podemos nos individuar, que é a condição para uma melhor saúde mental.

Neste momento, vou abandonar o discurso teórico e tentar abordar a questão prática da clínica e da psicoterapia com relação ao tema proposto.

Gostaria de usar como “mote” do que vou dizer o seguinte depoimento[1], que condensa as questões sobre as quais vamos refletir aqui:

“ Eu já tive depressão… Mas a gente vai colocando pensamentos bons na cabeça, e hoje eu me sinto bem melhor (…) Também me ajudou a força que meus pais me deram. Comecei a orar também. A gente sente que tem um ser Superior, e eu as pessoas estão aqui (na Terra) por algum motivo. Mas devagarzinho fui saindo dos problemas.”

A nossa atuação como Terapeutas faz com que nos depararemos com uma série de situações que nos exigem certas atitudes ou ações que levem em conta uma série de princípios e de regras que convencionamos chamar de regras éticas e que estão parcialmente objetivadas nos diversos códigos de conduta referentes ao atendimento do paciente e à pesquisa clínica (Códigos de Ética). Na verdade devemos lembrar antes de mais nada a diferença conceitual entre Ética e Moral.

A palavra Ética vem do grego ethos, e tem a ver com costume, caráter, conduta, enquanto que moral vem do latim mores, e está mais relacionada com o sistema de valores de uma dada sociedade, em uma dada época. Dessa forma seria mais adequado nos referirmos a regras morais, quando falamos de normas de conduta profissional.

A diversidade e sutileza das situações clínicas, somadas à complexidade dos relacionamentos interpessoais, à variabilidade individual (seja do paciente ou do terapeuta) e às diferentes circunstâncias e fatores que influenciam o processo terapêutico, no entanto, fazem com que nem sempre as regras de conduta ética presentes nos chamados Códigos de Ética Profissional sejam suficientes para orientar o terapeuta quanto à melhor conduta com determinado paciente, ou em determinadas circunstâncias. Por isto, nos cursos de formação e especialização, há a necessidade de se criar espaço para uma reflexão mais aprofundada dos dilemas éticos a que as profissões de ajuda estão submetidas.

Com finalidade didática, vou nomear alguns tópicos que solicitam da parte do terapeuta uma atitude ou mesmo uma ação ética. Mas antes disto, vamos examinar brevemente o que significa, de fato, assumir uma atitude ética.

É preciso ressaltar, de início, que a postura ética do terapeuta não pode identificar-se com a postura ética do Utilitarismo, que é tão disseminada entre nós, a ponto de nem termos consciência clara dela. O Utilitarismo identifica o certo com o que traz benefícios. Inclusive, preconiza que uma ação que resulte em resultado bom / aprazível para um grande número de pessoas é uma ação boa em si, mesmo que, para acontecer, uma(s) pessoa(s) tenha(m) que ser penalizada(s) de alguma forma; nesta perspectiva, não reconhece direito inviolável a nenhum indivíduo, já que tudo fica na dependência da avaliação da extensão do benefício do resultado. A postura ética do terapeuta é vinculada essencialmente com a Verdade do paciente, sempre levando em consideração que o indivíduo é um ser de relação, isto é, o seu Eu existe e se circunscreve na interação com os outros com quem se relaciona.

O trabalho terapêutico exige da parte do profissional uma postura ética a priori. Isto significa buscar sempre fazer o máximo para o bem estar do paciente, respeitar seus valores e escolhas pessoais, não julgá-lo segundo seus próprios (do terapeuta) códigos morais e religiosos e evitar fazer qualquer coisa que possa eventualmente prejudicá-lo.

Isto significa que o terapeuta tem que conhecer muito bem seus próprios pré –conceitos, seu código pessoal de valores morais, religiosos, etc ­ ─ os quais nem sempre são claramente conscientes , suas preferências, sua tipologia psicológica, seu gosto estético, seus pré-conceitos, etc.

Eu enfatizo neste momento os valores religiosos, pois eles costumam estar fortemente entrelaçados com as raízes culturias e subculturais do terapeuta e com seus valores familiares.

Estas são apenas algumas das razões pelas quais julgo que todo terapeuta deveria passar, durante sua formação, por um processo de análise ou por uma psicoterapia, que sem dúvida vai lhe facilitar este auto-conhecimento, de seus valores morais e religiosos mais profundos, já que a experiência clínica tem demonstrado que é muito difícil que uma pessoa sozinha tome consciência de certos aspectos de sua sombra, em particular aqueles tidos como negativos pela pessoa e/ou pela comunidade. Jung considera mesmo que o trabalho para se tornar consciente dos aspectos da sombra, o qual se desenvolve sobremaneira na análise pessoal, seja essencial para se ter uma atitude realmente ética frente ao paciente, conforme enfatizam PROULX (1994) e SOLOMON (2001). Hoje existe um consenso, nas associações de Psicanálise, de Psicologia Analítica e em outras instituições formadoras de psicoterapeutas, de que a análise ou a psicoterapia pessoal é essencial para o conhecimento da própria sombra, o qual, por sua vez, nos ajuda a evitar que projetemos no paciente aquilo que conscientemente não admitimos como sendo nossas próprias tendências negativas.

O conhecimento mais aprofundado da sombra também nos permite evitar que confundamos nossos próprios desejos e escolhas com aqueles de nosso cliente e, evidentemente, nossas concepções religiosas permeiam estes desejos.

A primeira obrigação do terapeuta seria a de zelar pela auto- estima do paciente. Em termos operacionais, isto se vincula ao cuidado empático e de apoio que devemos ter com o paciente, apoiando nele a sua crença de que ele pode ser curado. Não há nenhuma falsa sugestão de inverdade nisto, porque por mais grave que seja o quadro clínico, sabemos que existe um arquétipo do Curador em cada um de nós, conforme assinalou Groesbeck (GROESBECK, 1983), e que pode ser ativado com a ajuda do terapeuta.

Como deve ser o setting que propicie condições de cura? Falamos aqui não só do ambiente físico, mas principalmente do psicológico. No primeiro caso, devemos levar em conta que o contacto terapêutico necessita de um ambiente agradável, acolhedor e acusticamente isolado, já que, como sabemos, o segredo não é só uma questão ligada á intimidade da relação, mas também um fator de cura, quando compartilhado com uma outra pessoa em quem se deposita grande confiança, conforme assinalou Jung (1982). No segundo caso, o ambiente psíquico deve ser acolhedor, bem estruturado quanto a tempo e espaço, e deve estimular e encorajar o paciente a depositar suas angústias, sentimentos, emoções, idéias e valores morais e religiosos, sem medo de ser censurado ou avaliado. Vale aqui lembrar que nem sempre nós temos consciência da amplitude e significado das expressões não verbais que transmitimos ao paciente.

Por isto é que devemos ser supervisionados e analisados, para que possamos melhorar a auto-percepção de nossas reações emocionais frente às queixas do cliente e às exposições de seus valores e condutas, onde se incluem, evidentemente as crenças religiosas. Devemos canalizar essas reações emocionais para formas que não sejam iatrogênicas: não se trata de reprimi-las, mas de ter consciência delas e de dar-lhes roupagens que não sejam interpretadas negativamente pelo paciente.

Observa-se que tanto no curso médico como em outros que preparam profissionais para atuar na área da saúde mental não tem sido atribuído ainda o valor devido ao preparo para uma atuação ética, embora se tenha já um avanço neste campo com o estabelecimento das comissões de ética das faculdades e institutos de assistência à saúde e pesquisa. Muitos profissionais tornam-se vítimas de seu próprio despreparo, comprometendo, inclusive, a imagem da profissão perante a sociedade. Mas já existem reformulações curriculares nos Cursos de Medicina, onde se inclui a Bioética como disciplina que se estende do 1º. Ao 6º. Ano da formação. Na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, por exemplo, inclui-se, já no 1º. Ano, um bloco de Religiosidade e Espiritualidade, onde são apresentados os aspectos mais relevantes das grandes tradições religiosas ( Cristianismo católico e evangélico, judaísmo, islamismo, budismo, espiritismo e religiões afro-brasileiras).

Os principais objetivos deste módulo são:

1. Aumentar o cabedal de conhecimentos sobre as diversas religiões e oferecer recursos cognitivos para a resolução de possíveis conflitos que possam se estabelecer na relação médico-paciente-família.

2. Valorizar a espiritualidade como instância constitutiva do ser humano, desenvolvendo mecanismos de respeito e tolerância para com o paciente visto como ser integral e autônomo. É a valorização da história de cada um, sua biografia, crenças e intenções.

3. Provocar um “desequilíbrio interno” nos alunos, que leve à revisão dos seus conceitos pessoais, promovendo um exercício de busca de soluções para os possíveis enfrentamentos entre os conceitos (e preconceitos) próprios e os do paciente.

Vale lembrar que a Unicamp nada mais está fazendo do que atender à resolução da Associação Médica Mundial[2] (1999) que diz o seguinte:

1. Considerando que a ética médica e os direitos humanos formam parte integral do trabalho e da cultura da profissão médica, e

2. Considerando que a ética médica e os direitos humanos formam parte integral da história, da estrutura e dos objetivos da Associação Médica Mundial,

Resolve que a Associação Médica Mundial recomenda firmemente às escolas médicas no mundo inteiro que o ensino de ética médica e dos direitos humanos sejam incluídos como matéria obrigatória em seus currículos.

Na Associação Junguiana do Brasil (AJB), da qual sou membro e Diretor de Ensino, foi resolvido, em novembro de 2005 que a disciplina Ética fará parte obrigatória do treinamento do futuro analista. O estudo específico da Religiosidade já faz parte de seu currículo desde sua fundação em 1992.

Sendo a manifestação religiosa um processo natural, decorrente da própria natureza humana e do desenvolvimento da personalidade, infere-se que a própria espiritualidade pode ser reprimida, gerando também Neurose. A atitude do terapeuta que aceita esta posição deve levar ao setting não apenas uma boa continência para as manifestações espirituais do paciente. Para poder acolher e compreender empaticamente estas manifestações, o psicoterapeuta deve conhecer pelo menos os aspectos essenciais das principais religiões.

É importante lembrar que essas manifestações nem sempre se dão através do discurso vigil e/ou verbal. Elas podem aparecer em sonhos, em atividades artísticas ou em fantasias. A arte do terapeuta consiste em identificá-las, favorecer seu desenvolvimento e trabalhá-las simbolicamente, tomando o cuidado de não exercer qualquer influência nos valores éticos e religiosos do paciente.

De maneira geral as escolas de Psicoterapia raramente se preocupam com o ensino de Religiões Comparadas durante o treinamento do psicoterapeuta. O preconceito positivista é ainda marcante em nossas instituições de ensino superior.

Quando se adota uma atitude deste tipo corre-se o risco de transformar o exercício da psicoterapia em um procedimento quase que exclusivamente técnico, cometendo-se um erro epistemológico básico, que é desconsiderar a natureza espiritual do Ser.

 


 

I