JAMES HILLMAN (1926-2011), mentor e amigo
Não é fácil despedir-se de um mestre tão querido e presente. James Hillman foi um mestre extraordinário. Quem teve a oportunidade de assistir ao menos uma de suas palestras, ou segui-lo em seus seminários e aulas, experimentou a sensação um tanto rara de estar na presença de uma inteligência brilhante, sempre penetrante e surpreendente, que se fazia notar aliada a um sentido de profundidade que só almas muito cultivadas possuem.
Não é fácil despedir-me de James Hillman. Mestre, mentor, analista, orientador, autor, amigo. Ele esteve presente em minha vida profissional desde o começo, e essa presença, assim como a leitura de suas obras, me fizeram, antes de tudo, não desistir de Jung, não desistir da psicologia junguiana, quando eu a encontrava quadrada, esquemática, simplificada, com medo de pensar, de avançar, intensamente disfarçada em raso culto religioso. Hillman me devolveu a psicologia como uma atividade e um estudo da alma, da alma inteligente que não se cansa de desafiar mentes interrogantes e corações abertos. Essa foi sua terapia, uma terapia que começa nas ideias e vai penetrando nas emoções, realinhando as perspectivas habituais, tirando a alma da inconsciência e o sentimento da anestesia.
A noite em que eu o apresentaria em pessoa para uma excitante e excitada plateia brasileira nunca aconteceu. James nunca esteve no Brasil, apesar dos inúmeros convites ao longo dos anos e da enorme expectativa. O que diria ele de uma experiência brasileira? Esta pergunta permanecerá no coração de todos nós.
Seu livro Revendo a Psicologia, de 1975, é um marco histórico no campo da psicologia junguiana, e no meu entender os junguianos podem ser divididos entre antes e depois deste livro. Meu primeiro contato com Hillman foi exatamente através de sua leitura, em 1984, quando estava em Nova York para os estudos de mestrado na Universidade e a formação em psicologia analítica na C. G. Jung Foundation. Foi para mim uma imensa renovação, e a re-definição de meu próprio entendimento do que é ser junguiano. Mostrou-me a sofisticação do pensamento arquetípico, e há muito na obra de Jung que só com Hillman pude compreender mais profundamente, uma experência sentida também por muitos colegas. Leitor de Jung, ele nos ajuda a entender melhor Jung. E avançar.
Depois, fui seu aluno em diversas oportunidades e lugares ao longo dos anos. Depois ainda, fui por muito tempo seu devoto tradutor para o português do Brasil, vertendo para nossa língua inúmeros de seus livros e textos, numa atividade tão desafiadora quanto prazerosa, já que James, também um escritor talentosíssimo, extremamente consciente das palavras que carregavam seus insights, fazia psicologia com a linguagem. Uma raridade. Depois, fui seu amigo, esse privilégio.
Hillman era um pagão. “Permaneceu fiel a seu caráter até o fim,” nos disse a incrível e bela mulher que permaneceu fiel a ele até o fim, sua esposa Margot McLean, artista plástica, também uma amiga querida. Sua luta com o monoteísmo da cultura espelha e amplia dramaticamente a percepção profunda de Jung que diz que, para nós ocidentais, o grande problema sempre foi o “monoteísmo da consciência.” Um pagão num mundo de crescente complexidade — mundo que assiste, apesar da beleza de sua própria novidade, a fuga vã dos Deuses, e por isso fica cada vez mais feio, cada vez mais sem conexão, mais cruel, mais difícil. Percebeu como ninguém os Deuses retornando pela porta dos fundos.
Permaneceu fiel a Jung, e permaneceu fiel à alma. Desde seus primeiros livros até seus últimos escritos, testemunhamos sempre, qualquer que seja seu tema (e foram tantos!), uma defesa da alma, uma radical defesa da imaginação para além de qualquer racionalismo, desafiando qualquer racionalismo. Há sempre nele aquilo que podemos, a cada vez que o lemos ou ouvimos, entender como a legitimação da imaginação.
Sua obra é espantosamente extensa, são mais de vinte livros, muitos artigos espalhados em revistas e volumes esparsos, participação em coletaneas, ediçōes especiais. É um pensador seminal, deixando essa sua semente viva em vários campos, atraindo a atenção e o amor não só de psicólogos e psicoterapeutas profissionais, mas também de artistas, escritores, astrólogos, sociólogos, filósofos, diretores e atores de teatro, empresários, dançarinos, ambientalistas. Não há um tema de fato relevante em Jung, e são inúmeros, que Hillman não tenha abordado, enfrentado, tocado e torcido no sentido de abrir ainda mais a reflexão e a compreensão aprofundada e renovada das coisas.
Agora sinto a diferença sensível entre ter um mestre vivo e um mestre morto. Terei que elaborar esta diferença. Vou me sentir sempre muito junto dele. Fico neste momento com o gosto um tanto reconfortante de pensar que consegui devolver ao menos um pouco do tanto que ele me deu, difundindo seu pensamento e sua visão genial e entusiasmada da vida nas traduções e nos grupos de estudo de sua obra, participando assim de seu projeto de re-animação das experiências. Continuarei fiel a esse projeto. A importância de seu trabalho e o impacto libertador de seu gênio ainda estão para serem descobertos e sentidos.
“Estou morrendo, mas não posso estar mais impregnado de vida,” nos escreveu em seu último email. Morrer como uma intensificação do viver é parte de seu legado.
Agora os astros já podem saber: James Hillman virou estrela.
Obrigado, James, do fundo de meu coração.
Gustavo Barcellos