O Encontro com a Raposa

Lunalva Chagas

             […] – Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração… É preciso ritos. Exupèry

                                                                                                                       

                     O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, é reconhecido como um clássico da literatura, tendo sido reeditado ininterruptamente, do seu lançamento em 1943 até os dias de hoje em oitenta idiomas, incluindo os mais diversos dialetos.
                      A obra de Exupèry se expressa por imagens mais do que por palavras. O  diálogo entre o Pequeno Príncipe e a raposa é carregado de metáforas que apontam para  o encontro analítico.

A raposa, assim como o analista, usa a audição para perceber as coisas. Nos contos é sempre perspicaz e criativa utilizando o imaginário das pessoas, jogando com suas vaidades e com o desejo de serem iludidas.

No contato com a raposa, o pequeno príncipe é preparado para perceber a alma contida nos relacionamentos, para se deixar penetrar por ela, para cativar e ser cativado.

O encontro analítico favorece o conhecimento de si mesmo, reserva espaço e tempo para que a psique possa ser espelhada, para que perceba as contradições de sua alma e seja revelada.

Os chineses afirmam que a raposa é o único animal a saudar o nascer do sol: ela dobra as patas traseiras, estica, junta as patas dianteiras e se curva. Procedendo deste modo durante diversos anos, é então capaz de se transformar e viver no meio dos homens, sem despertar sua atenção.

Na Sibéria, a raposa é tida como um astucioso mensageiro dos infernos. Atrai heróis lendários para o mundo subterrâneo sendo freqüentemente representada sob a forma de uma raposa negra (Hara).

Refletindo como um espelho as contradições humanas, a raposa pode ser considerada como um elemento que induz ao psíquico, ao eu psicológico.

Psique é o sujeito e conhecimento psicológico é o espelho que ela às vezes levanta diante de seu rosto e no qual se reflete para ver sua expressão. O que Psique deixa ver de si no espelho aparece numa forma que não é para sempre, mesmo que assim pareça; uma ilusão que se justifica, porque é para sempre aquilo que se mostra nessa forma efêmera. De fato, a novidade das metáforas e das expressões de Psique não é absoluta; Psique não se altera, não se torna outra, Não é múltipla, mas permanece única e estável, e no entanto em Manifestações infinitas e variadas. (DONFRANCESCO, 2000, p.11).

O espelho é em si o suporte de um simbolismo extremamente rico. Esta superfície que tem a capacidade de refletir traz em sua essência a significação profunda do poder de revelar a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Como instrumento de iluminação, simboliza a sabedoria e o conhecimento.

O espelho aparece em mitos e contos de diversas culturas. Em todos eles tem a propriedade de refletir a alma humana.

O mito japonês de Amaterasu traz a idéia de que o espelho fazia a Luz Divina sair da caverna e refletir sobre o mundo. No simbolismo siberiano, os dois grandes espelhos celestes refletem o universo. Na tradição Veda, o espelho é a miragem solar das manifestações; simboliza a sucessão de formas, a duração ilimitada e sempre mutável dos seres. Na literatura islâmica o espelho mágico permite ler o passado, presente e futuro.

A outra face do espelho inspira terror por descortinar nossa verdadeira alma. Nos contos de fada, aparece entre a madrasta e Branca de Neve entre a Bela e a Fera, sempre trazendo em seu reflexo a realidade. É a imagem que denuncia, que revela o que foi negado, desilude, traz o peso da verdade. O espelho coloca o homem de frente para sua face real.

A raposa com sua astúcia e sua capacidade de espelhar a alma, sorrateiramente coloca os homens em situações onde sua própria essência acaba por ser seu algoz ou salvador.

Marie-Louise Von Franz (1992), na análise que faz de Exupéry cita o simbolismo tanto negativo quanto positivo da raposa. Negativamente, representaria a crueldade utilizando-se de meios ilícitos para alcançar seus objetivos. No aspecto positivo, cita Picinellus que acredita ser a raposa um símbolo de fé comparando-a aos cristãos que crêem sem ver. Ela mantém uma percepção refinada do todo pela audição.

Esta habilidade vem de encontro à afirmação de Picinellus, de que a raposa conhece o invisível. Neste ponto, tanto ele quanto Exupéry sugerem a existência do “invisível aos olhos”.

Esta característica dá à raposa o dom de ser uma medianeira entre o pequeno príncipe e sua alma:

Eu não posso brincar contigo – disse a raposa
Não me cativaram ainda.
Que quer dizer cativar?
É uma coisa muito esquecida, disse a raposa.
Significa criar laços […].

A raposa se referia a uma adesão interior, uma ligação de fé, sem obrigações, advinda do desejo de se atar a alguém voluntariamente.

Os laços de amor criam raízes profundas, nutrem as relações, formam uma rede de significados.

Laços lembram os fios que atam e direcionam. Como o “fio de Ariadne”, símbolo da via de ligação interna da criatura com o criador. O sentido místico dos fios e laços são como ligaduras exteriores que refletem uma conexão interior:

[…] Mas se tu me cativas, serei a única para ti e tu serás o único para mim.

A raposa convida o pequeno príncipe ao envolvimento. Deseja ser marcada por sua personalidade assim como deixará impressa a sua na dele. Como na química, quando duas substâncias interagem, alteram uma à outra. A partir deste encontro, os campos de trigo passam a ter significado, porque lembram os cabelos dourados do pequeno príncipe.

O contato com o espelho e o espelhar nos aprofunda mais e mais nos mistérios, passamos a desejar, a ansiar pelo encontro com o invisível.

Quanto mais nos aprofundamos mais atração pelo mistério sentimos. A natureza da psique alcança obscuridades tão fora do alcance do ego que quando conseguimos entrar um pouco que seja nesta natureza inesgotável, somos tomados por pothos, pelo desejo de prosseguir ansiando a nós mesmos.

Depois que formos cativados pela alma nossa vida será, como diz a raposa, como que cheia de sol.Alcançaremos a iluminação que vem do sentimento e tudo à nossa volta será pleno de significado.

A prática analítica abre este espaço para que nosso olhar saia da consciência adaptativa e perceba o mundo interior. É marcada por encontros regulares e horário pré-fixado. Desta maneira, a psique se prepara para o encontro e depois dele não será mais a mesma. Deixa-se envolver pelas operações alquímicas que o conteúdo revelado provoca, pelas percepções, por insigths e reflexões.
[…] – Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração… É preciso ritos.

Todo rito simboliza e reproduz a criação. É uma confluência de forças e de ordenações que convergem para um sentido, partem de um centro de valor que é ao mesmo tempo a referência que inicia e a que fecha o ritual. Todo rito é um encontro que surge do acúmulo e da combinação desses poderes concentrados.

Os ritos têm ritmos diferentes, lentidão ou agitação. Os rituais acontecem fora da vida, são como fugas para fora do tempo. Ao sairmos do tempo saímos da ordem cósmica para entrar em uma outra ordem, em um outro universo.

Ao participarmos de um rito, nos retiramos de Cronos e entramos em Kairós, na intensidade da vida interior.

A raposa aos poucos vai ensinando ao Pequeno Príncipe sobre o sentimento e a maneira de ampliar a perspectiva sobre sim mesmo.

Da mesma maneira, a proposta analítica de compreender o mundo objetivo a partir do subjetivo, pede uma regularidade de encontros, tempo dedicado a escutar a alma, alcançar o espírito, construir pontes e desenvolver uma linguagem que atenda a este propósito:

[…] Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos.

Os primeiros encontros são marcados por estranheza, ansiedade e insegurança. Pacientemente, vamos criando condições para que o relacionamento com o inconsciente aconteça.

É preciso respeitar o ritmo de cada psique, esperar até que esteja pronta para se apresentar.  Neste sentido a linguagem pode se tornar uma fonte de mal-entendidos na medida em que se precipita em explicações racionais.

O sonhador pode reduzir as imagens oníricas na ansiedade em decifrar seu conteúdo. Muitas vezes é preciso pedir para que o sonho seja contado novamente, sem pressa, sem nenhuma intenção, para que as imagens possam se acomodar e a fantasia projetada sobre elas possa surgir.

O sonho inicial de um paciente pode ilustrar esta idéia.

Marcos[1] caminhava sobre uma ponte velha e muito frágil. Parecia desabar a qualquer momento. A tarefa era caminhar pela ponte de um lado a outro. Inicia a travessia tremendo, vacilante, sem muita esperança, mas conforme vai repetindo a tarefa, a ponte vai se transformando. Depois de um tempo ela se torna uma ponte de aço, larga e brilhante.

                       Esta imagem reforça a idéia de dedicação e paciência. Parece tratar-se de um sonho prospectivo e ao mesmo tempo encorajador. Sugere que o relacionamento consigo mesmo, frágil inicialmente, pode se estruturar e ser facilitado.

O primeiro relato do sonho foi como uma sentença de morte e fracasso, com fantasias de desmoronamento, porém, ao ser contado pela segunda vez, Marcos percebeu que havia mais uma parte, a transformação da velha estrutura em uma outra mais sólida e segura.

Para tanto, ele deveria se dispor às travessias, superando sua insegurança.

Ir e vir na ponte que liga o interno ao externo, amplia nossa consciência e aprofunda nosso olhar para a vida e para as pessoas:

Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante para ti.

A rosa é uma flor simbólica. Além de sua beleza, perfume e forma é associada à flor de lótus do Oriente, estando ambas muito próximas em significado ao símbolo da roda. Em muitos textos ela é citada como uma manifestação oriunda de águas primordiais, sobre as quais se eleva e desabrocha. Refere-se ainda a uma perfeição acabada, uma realização sem defeitos, a taça da vida, a alma, o coração e o amor. Muito se tem escrito sobre a rosa como objeto de contemplação e, assim como a Mandala, é considerada um centro místico.

No Cristianismo, a rosa é tida como a taça que recolhe o sangue de Cristo ou a transfiguração das gotas desse sangue, ou ainda, as chagas de Cristo. Outros estudiosos a colocam como a imagem de Cristo, de quem a alma recebe o reflexo.

A rosa tornou-se um símbolo do amor, do dom do amor, preferida pelos alquimistas, branca ou vermelha. A rosa branca é associada à pedra em branco, objetivo da pequena obra e a rosa vermelha à pedra vermelha ou a Grande Obra. A maior parte das rosas tem sete pétalas, e cada uma dessas pétalas evoca um metal ou uma operação da obra alquímica.

À medida que dedicamos tempo às questões do sentimento, ao processo de individuação, ao relacionamento com a psique, mais cara ela se torna para nós, mais intensa a nossa capacidade de compreendê-la, de acompanhar seus movimentos, de recebê-la quando se apresenta em suas inúmeras faces. Este tempo dedicado às questões do coração é transformado em libido, em energia psíquica concentrada.  Tal investimento torna nossa essência cada vez mais valiosa e especial.

O tempo dedicado ao aprofundamento do sentimento nos aproxima da essência da rosa, da capacidade de amar a natureza de todos os seres, do respeito à singularidade. Alcançar a rosa é alcançar distância do sofrimento de alma e compreensão ao mesmo tempo.

Ao sermos semeados pela individuação somos tocados, iniciados no mistério da rosa, no profundo.  Parafraseando James Hillman, quando descemos aos vales profundos e sombrios onde o sofrimento inunda a alma, adquirimos consciência de nossa natureza, nos depuramos através dos longos exercícios de paciência para com nossa massa confusa, cheia da ambivalência dos sentimentos e emoções, de paixões e sofreguidão.

Tentando fugir do exercício que a alma nos impõe, passamos a nos debater, desejosos do paraíso.  Nos agitamos, esperneamos contra o desenvolvimento.

Depois de um longo tempo de sofrimento, lutando contra os conflitos com o inconsciente, alcançamos um centro de estabilidade. Deste centro compreendemos a natureza das coisas e adquirimos um distanciamento de nossas penas. Neste ponto a dor cessa, encontramos paz e clareza suficiente para observarmos nossas partes se debatendo em fúria. Alcançamos um ponto onde nos sentimos acima do bem e do mal.

Sob uma nova perspectiva compreendemos então as insistentes tentativas de impedir o crescimento, de escapar à dor, de sair da ignorância. Compreendemos que, apegados ao processo de adaptação, ficamos cegos para o desenvolvimento, presos à ignorância a que nos mantém a sombra, não percebemos que existe “luz depois do túnel”.

Ao alcançarmos o espírito, esta região distante, nos picos elevados, sentimos paz, plenitude, porém esta serenidade não dura para sempre. Logo a alma nos tragará para os vales de novas experiências, de novas lutas, mas guardaremos a lembrança da completude no espírito, pois fomos iniciados nos mistérios da rosa.

O tempo que um analista dedica à própria psique o habilita a se dedicar às demais, porque pôde sentir as dores e as alegrias do seu processo em desenvolvimento.

Não possuir controle sobre os complexos, nossos demônios internos, nos torna mais humildes e torna nosso olhar mais caridoso, paciente e maduro para com a psique alheia. Passamos a perceber como corre o tempo no mundo interno e como seguir o fluxo pacientemente sem induzi-lo nem apressá-lo.

O trabalho com a psique requer compaixão, paciência com conteúdos que teimam em não se mover, cuidado para não distorcer o que nos é apresentado.

E ao final do capítulo o pequeno príncipe diz:-

Sois belas, mas vazias. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.

Ao que a raposa responde

Os homens esqueceram essa verdade. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa.

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[1] Por motivos éticos, o nome original foi trocado e adotado por  nome fictício.


 BIBLIOGRAFIA.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

DONFRANCESCO, Francesco. No espelho de Psique. tradução Benôni Lemos e Patrícia Bastianetto, revisão de Zolferino Tonon, São Paulo: Editora Paulus, 2.000.

EXUPÉRY, Antoine de Saint. O Pequeno Príncipe. Disponível em: http://www.opequenoprincipe.50webs.org Acesso em jan/2006..

HENDERSON, Joseph L. apud VON FRANZ, Marie-Louise Puer Aeternus: A luta do adulto contra o paraíso da infância. tradução de June M. Corrêa, revisão de Ivo Storniolo, coleção Amor e Psique, São Paulo: Editora Paulus, 1992.

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_____. Suicídio e Alma. tradução Sonia M.C. Labate, Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1993.

_____. O Livro do Puer, ensaios sobre o arquétipo do puer aeternus. tradução Gustavo Barcellos, São Paulo: Editora Paulus, Coleção Amor e Psique, 1998.

JACOBY, Mario. O encontro analítico: transferência e relacionamento humano. tradução Claudia Gerpe. São Paulo: Editora Cultrix, 1984.

PEDRAZA, Rafael López. Hermes e seus filhos. tradução Maria Silvia M. Netto, São Paulo: Paulus, 1999.

SAMUELS, Andrew; SHORTER,Bani; PLAUT, Fred, Dicionário crítico de análise junguiana.  tradução Pedro Ratis e Silva, Rio de Janeiro: Editora Imago, 1988.

VON FRANZ, Marie-Louise. Alquimia introdução ao simbolismo e à psicologia. tradução Álvaro Cabral,  São Paulo: editora Cultrix,  1980.

_______. Puer Aeternus: A luta do adulto contra o paraíso da infância. tradução de June M. Corrêa, revisão de Ivo Storniolo, coleção Amor e Psique, São Paulo: Editora Paulus, 1992.

Os homens esqueceram essa verdade. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa.